Mais de um século, especificamente 129 anos, separam a sociedade atual daquele que foi considerado o marco na luta pelo ideal da igualdade racial no país: a abolição da escravidão. O tempo, no entanto, não apagou os vestígios dos 358 anos em que o Brasil passou sob o regime escravocrata. Diferente do que era, mas ainda persistente, as disparidades pela cor afetam o cotidiano de negros e negras que convivem com a silenciosa violação de seus direitos. Para pesquisadores e para quem, literalmente, sente na pele as discrepâncias da sociedade por ter a pele negra, há uma naturalização do racismo.
Maria Luiza acredita que o racismo existe como conduta (Foto: Jailson Soares/O Dia)
Na última semana, um jovem de 20 anos jogou seu veículo sobre manifestantes contrários aos supremacistas brancos que protestavam na cidade de Charlottesville, nos Estados Unidos, causando uma morte e ferindo 19 pessoas. O fato reacendeu o debate sobre o racismo. “É comum andar no shopping e ver uma jovem negra cuidado de uma criança branca enquanto a mãe também branca faz compras. Isso são formas ainda de um modo de vida que se reproduz de forma natural, mas que vem de raízes históricas. Você não vê aquele indivíduo como igual, que devia ter o mesmo acesso a saúde, educação, transporte e forma de poder ser da mesma forma. Há uma disparidade por conta da cor, porque há essa naturalização do racismo”, considera o professor de História da Universidade Federal do Piauí, Mairton Celestino da Silva.
O aspecto levantado pelo professor nada mais é que a clara indicação de que o racismo permeia o cotidiano e está entranhado silenciosamente nos mais diversos tipos de relações sociais. Está presente nas relações trabalhistas com empregadas domésticas e babás, na imagem estereotipada que a mídia reforça do negro, na pobreza, nos subempregos e na falta de escolaridade.
O Brasil é um país que reproduz tendências racistas em um universo de maioria negra. De acordo com a classificação do IBGE, 52,9% da população brasileira é composta por pretos e pardos. A artista Maria Luiza é parte deste percentual. Como mulher negra, ela faz apontamentos do que sente e estuda dentro do cotidiano de uma Teresina também marcada por aspectos discriminatórios.
“Hoje, é inadmissível alguém dizer que é racista. Então fala-se que não é, que não existe, mas a conduta é racista. São exemplos diários que todas as pessoas negras tem de lidar por conta de um racismo que também evoluiu com a sociedade. Hoje, com a internet, assim como há vozes que combatem essas práticas, há também o racismo velado de todos os dias”, ressalta a artista.
Um levantamento feito pelo instituto de pesquisa Data Popular apurou que os números sobre como a população brasileira vê o problema do racismo no país são preocupantes: 92% creem que há racismo no Brasil, mas apenas 1,3% se considera racista; 92 milhões de brasileiros adultos já presenciaram um branco se referir a um negro como macaco e apenas 12% tomaram uma atitude contra isso; 17% dos brancos não gostariam que uma filha sua se casasse com um homem negro.
Um cenário que comprova que o racismo é real, porém velado em uma sociedade hierarquizada com base em privilégios.
Discriminação acontece de forma diária, afirma jovem professor
Daniel nunca foi impedido de entrar em algum lugar ou fazer qualquer atividade em virtude da sua cor. Mas ele tem a consciência histórica que nem sempre foi assim. Pessoas negras, por muito tempo, como explicou o professor Mairton Celestino, foram cerceadas de direitos apenas pela tonalidade da pele. O que mudou, no entanto, não foi a superação total desses estigmas, mas a forma como acontecem. Daniel afirma ser alvo diário de descriminação, muitas vezes sutis, mas sempre presentes, por ser negro.
"Às vezes não é algo tão gritante para os outros, mas a gente sempre percebe um olhar diferente, alguém que atravessa a calçada por receio quando eu passo também e pequenas outras atitudes cotidianas", confessa.
Um preconceito tão enraizado, que ele mesmo se vê propagando sem intenção. "Eu mesmo já me vi sobressaltado porque uma pessoa negra entrou no ônibus. Há uma naturalização desse racismo que propagamos mesmo sem querer", explica.
Mas o jovem, com o tempo, toma mais consciência do seu lugar de intervenção dentro desta realidade. Assumir os crespos do cabelo, que hoje se apresentam em um auto afirmativo black power, fez parte desse contexto.
"Sou professor e, hoje em dia, em sala de aula, percebo que depois de ter começado a usar meu cabelo assim, os meninos também se sentiram à vontade para assumir seus cachos, seus crespos. Isso é empoderamento", confessa.
Mas a postura de reafirmar seus direitos e seu lugar de igualdade perante a sociedade, nem sempre é respeitada. Isso porque, como dito acima, a sociedade reverbera atitudes discriminatórias com constância.
O jovem relata que já foi alvo de revista truculenta da polícia, por exemplo. “Eu estava saindo de casa para ir na casa de uma amiga. Estava bem simples, de chinelos e bermuda e me senti totalmente invadido com a forma da abordagem policial. Ali é onde se mostra o nível de diferença no tratamento apenas pela minha cor”, explica.
Mas o professor é firme na forma como encara o mundo em sua rotina: fortalecer a sua negritude é falar sobre a necessidade de uma sociedade igualitária, onde a cor, nada mais é, que um dos milhões de traços humanos. Antes de ser negro ou branco, para Daniel, é preciso lembrar que todos são seres humanos.
Maiorias dos casos de racismo não são denunciadas
Criada para acolher, entre outras demandas, as denúncias de crimes de injúria racial e racismo, a Delegacia de Direitos Humanos e Repressão as Condutas Discriminatórias presta um papel importantíssimo para a garantia dos direitos individuais e combate a condutas discriminatórias. A atuação da instituição acontece, no entanto, de forma parcial. O delegado Emir Maia, titular da delegacia, destaca que a maioria dos casos de injúria e racismo que acontecem na sociedade não chegam a serem denunciados. “As pessoas se acostumaram a viver essa situação de ódio”, destaca.
Delegado Emir Maia afirma que as pessoas se acostumaram a viver essa situação de ódio (Foto: Jailson Soares/O Dia
Mas em 2017, já são 41 inquéritos abertos por conta de injúrias raciais e dois por conta de racismo. Ambos os crimes com previsão legal de detenção. O conceito jurídico brasileiro sobre injúria racial e sobre racismo, embora estejam ligados, são apresentados pela legislação de maneira diferenciada.
A injúria racial, que está prevista no artigo 140, parágrafo 3°, do Código Penal, estabelecendo pena de reclusão de um a três anos, além de multa, é considerada uma ofensa à dignidade ou ao decoro, utilizando para isso elementos ou palavras referentes à raça, à cor, à etnia, à origem, à religião de uma pessoa de raça diferente, ou mesmo à origem ou condição de uma pessoa idosa ou portadora de deficiência.
“A injuria racial ocorre todos os dias. É você macular a honra de uma pessoa determinada com palavras de baixo calão e sujeitando a comparações espúrias e rebaixando sua cor. A injuria racial é apenado com reclusão”, destaca o delegado Emir Maia.
O racismo, por sua vez, está previsto na Lei n° 7.716/1989, e considera conduta discriminatória atos dirigidos a um grupo ou coletividade, referindo- se a crimes mais amplos. Atualmente, a Delegacia de Direitos Humanos apura dois casos de racismo em Teresina. Um deles com um grupo de modelos que foi dispensado de um trabalho por conta da cor e, o outro, com um grupo de crianças e adultos expulsos de uma pizzaria também em decorrência de serem negros.
Como denunciar?
Existem muitas formas denunciar. É possível prestar queixa nas delegacias comuns e especializadas em crimes raciais, como é o caso da Delegacia de Direitos Humanos e Repressão as Condutas Discriminatórias, no Centro de Teresina. E também através telefone fixo da instituição e do Disque 100.
Professora expõe racismo e reabre discussão
Diva Guimarães tem 77 anos, nasceu no interior do Paraná, e vive em Curitiba. A professora, em um discurso emocionado ao participar da 15ª edição da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), levou o ator Lázaro Ramos, um dos palestrantes do evento, às lágrimas. O vídeo viralizou na internet e teve milhões de visualizações. Mas muito mais que se tornar conhecida do grande público, Diva reascendeu uma discussão em todo o país: a do racismo.
“Eu sou uma sobrevivente pela educação. Com todo o preconceito e com todas as coisas, eu venci". Esse é só um trecho do forte discurso trazido pela professora, ela relatou aspectos relacionadas aos problemas na educação pública brasileira e deu uma lição de vida ao lembrar dos ensinamentos da falecida mãe.
A professora é descendente de escravos e explicou que durante a vida inteira foi alvo do racismo incrustado na sociedade. Da infância à terceira idade, Diva mostrou que se amparar na educação foi um modo de driblar as dificuldades sempre apresentadas durante a vida.
“Sempre haverá exceção, mas haverá a maioria que vai vencer essa maldição, que é o que foi para nós”, finaliza.
P U B L I C I D A D E
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Glenda Uchôa - Jornal O Dia
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